O problema do capitalismo não é sua capacidade de criar riqueza, e sim sua incapacidade de compartilhá-la. Um sistema econômico global que produz um nível incrível de riqueza, mas não consegue garantir “fome zero” neste planeta é um sistema profundamente equivocado. Na ausência da mão visível e auxiliadora de governos democráticos e transparentes, os mercados estão produzindo resultados socialmente indesejáveis e provavelmente insustentáveis.
A maneira mais exitosa – na verdade, a única – de se prover uma proteção social mínima e universal em sociedades modernas é o estado do bem estar social garantidor de direitos básicos para os necessitados, financiado por meio de pagamentos compulsórios (contribuições ou impostos) de todos os integrantes da sociedade de acordo com sua capacidade. Os sistemas podem ser organizados de maneiras diferentes, mas ao fim e ao cabo todos se baseiam na capacidade e disposição dos governos de impor à cidadania uma solidariedade obrigatória para com os membros mais pobres da sociedade.
É impossível proteger os pobres por meio de sistemas de seguridade social voluntária, e tem se mostrado muito difícil estender sistemas de seguridade social contributiva para além da economia formal. A partir do reconhecimento de muitos países em desenvolvimento de que pouco se avançara para sair de mercados de trabalho informais e passar para práticas empregatícias calcadas em direitos, tornou-se cada vez mais claro que para se progredir na questão da extensão de cobertura da seguridade social é preciso ter políticas de estado novas, decisivas e inovadoras. Na esteira de intensos debates em âmbito nacional e internacional, e durante a Conferência Internacional do Trabalho (CIT) de 2012, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) adotou a nova Recomendação Relativa aos Pisos Nacionais de Proteção Social[1] (No. 202) (doravante chamada de “a Recomendação”) que afirma que a cobertura universal de seguridade social énecessária, desejável e possível:
“… pisos de proteção social… devem contemplar ao menos as seguintes garantias básicas de seguridade social:
a) acesso a um elenco nacionalmente definido de bens e serviços, constituindo cuidados essenciais à saúde, incluindo assistência à maternidade, que atendam aos critérios de disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade e qualidade;
b) uma renda básica e segura para as crianças, pelo menos atingindo um nível mínimo definido nacionalmente, que viabilize o acesso à nutrição, educação, cuidados e quaisquer outros bens e serviços necessários;
c) uma renda básica e segura, atingindo pelo menos um nível mínimo definido nacionalmente, para pessoas de idade economicamente ativa, mas que estejam incapacitadas de obter uma renda suficiente, particularmente devido a doença, desemprego, maternidade e deficiência; e
d) uma renda básica e segura, atingindo pelo menos um nível mínimo definido nacionalmente, para os idosos.”[2]
Entretanto, reconhecendo que um sistema voltado exclusivamente aos pobres tende a ser um sistema pobre, a Recomendação endossa o conceito da OIT de se almejar simultaneamente a extensão vertical e horizontal da seguridade social.
Os países membros devem:
“(a) priorizar a implementação de pisos de proteção social como ponto de partida para países que não têm um nível mínimo de garantias de seguridade social;
(b) buscar oferecer níveis mais altos de proteção para quanta gente for possível, refletindo as capacidades econômicas e fiscais dos Membros, e o quanto antes.”[3]
Pisos de Proteção Social (PPSs) não são projetados como medidas únicas de combate à pobreza, mas como direitos sociais que são um primeiro passo rumo a estipulações abrangentes de seguridade social que atinjam ao menos o nível da Convenção de Seguridade Social (Normas Mínimas) da OIT, de 1952 (No. 102).[4] A inserção dos pisos sociais num conceito geral de solidariedade evita a divisão antagônica entre beneficiários (os pobres merecedores) e contribuintes, e abre as portas para um amplo apoio político e senso de “propriedade”.
Em última instância, reformas sociais não acontecem por que são de algum modo necessárias, possíveis e desejáveis, mas sim porque os pobres as exigem e as elites passam a se perguntar se a paciência de seus subalternos não está prestes a acabar. A profunda crise econômica global abalou as crenças dogmáticas e a confiança ingênua no fundamentalismo de mercado. Há, portanto, uma janela de oportunidade. Os atuais níveis obscenos de desigualdade são insustentáveis. Além disso, o sucesso eleitoral de governos que implementaram programas de transferência direta de renda em larga escala, em países como o Brasil ou a Índia, também contribuiu para a crescente popularidade de PPSs entre os formuladores de políticas públicas. Em suma, pode ser uma idéia cuja hora chegou.
A Recomendação se vale fortemente das experiências positivas e inovações de muitos países de renda média ou em desenvolvimento como Brasil, Gana, Índia, Namíbia e Tailândia. Ela combina a tradição européia de seguridade social baseada em direitos com a experiência inovadora de programas de transferência direta de renda em larga escala, como o Bolsa Família brasileiro, ou garantias de emprego, como a Lei Mahatma Gandhi de Garantia Nacional do Emprego Rural (NREGA) indiana. Nenhuma outra norma de seguridade social se baseou a este ponto nas experiências práticas de países de todas as partes do mundo. Isto faz com que a Recomendação tenha grande potencial de ser aplicada universalmente.
A grande maioria dos países – certamente o G-20, que representa 85% da população do mundo – já atingiu um nível de desenvolvimento econômico suficiente para prover proteção social a seus cidadãos. Estes países não têm uma “desculpa econômica” para deixar uma parte de suas populações vivendo em extrema pobreza. Mesmo para os países menos desenvolvidos, como foi demonstrado por pesquisa da OIT,[5] um piso de seguridade social básico não é inatingível. Contudo, alguns países podem precisar de solidariedade internacional e transferências para complementar seus próprios esforços,[6] algo que os países mais ricos podem querer fazer não só por altruísmo, mas também para diminuir as pressões migratórias oriundas de países incapazes de oferecer mesmo a mais básica segurança em termos de renda para seus povos.
A Recomendação não somente define metas desejáveis para as políticas públicas, como também fornece orientações para atingi-las. O Artigo 3 da Recomendação 202 oferece uma lista abrangente de princípios de políticas públicas que podem ser resumidos em cinco grandes temas:
- o Estado tem a responsabilidade primária de garantir a proteção social universal;
- os benefícios serão direitos universais concedidos em bases não-discriminatórias;
- os sistemas precisam ser bem administrados, prestar contas e ser baseados em impostos progressivamente coletados e suficientes para garantir que no cômputo geral haja solidariedade financeira e sustentabilidade;
- precisam haver metas e prazos para que, progressivamente, se atinja a cobertura universal; e
- as pessoas precisam ter voz e representação por meio de mecanismos gratuitos de reclamação individual, bem como por intermédio de organizações coletivas.
Políticas de proteção social para serem exitosas requerem amplo apoio público. Uma norma trabalhista adotada na CIT provavelmente é o processo mais transparente e inclusivo que existe atualmente nos sistema multilateral global. A OIT é estruturada de forma muito mais democrática que o Banco Mundial ou o FMI, que são controlados pelos países industrializados sob a liderança dos Estados Unidos.
Ademais, a OIT é a única organização internacional que concede uma voz institucional a atores não-estatais. Ao contrário de todos os outros foros, em que as consultas se dão com um seleto grupo de ONGs, mas as decisões são tomadas somente por governos, na OIT as organizações tanto dos trabalhadores quanto do empresariado têm o direito efetivo de votar.
Entretanto, os delegados à CIT reconheceram que além do tripartismo tradicional, políticas exitosas de proteção social requerem a inclusão de todas as organizações relevantes que representem as pessoas em questão, e solicitaram que os “... Membros devem convocar consultas nacionais com regularidade para avaliar os avanços e discutir políticas visando a extensão horizontal e vertical da seguridade social.”[7]
Em última instância, a Recomendação 202 só fará diferença para a vida das pessoas se for abraçada em âmbito nacional. O chamamento aos governos para que realizem um processo de consulta nacional e inclusivo, com a presença de todas as partes interessadas relevantes, é uma sugestão para se criar na esfera nacional a ampla coalizão necessária para a superação da resistência política à extensão; visa também tornar os governos mais responsivos, no sentido de que compromissos com o aumento da cobertura de seguridade social sejam acompanhados de ações e resultados reais.
Na condição de fortes e apaixonados defensores de um piso social universal na OIT, os sindicatos põem os interesses de todos os trabalhadores e suas famílias acima dos interesses mais estreitos de seus sócios. Se os sindicatos querem barrar a erosão da economia formal e a emergência de uma economia precária e informal, eles têm que sindicalizar e representar trabalhadores de todos os tipos. E precisam se voltar aos principais problemas e questões destes trabalhadores. O PPS é uma oportunidade para o movimento sindical se tornar mais inclusivo e mobilizar e organizar os trabalhadores da economia informal. É também uma grande oportunidade para “empoderar” os trabalhadores da economia informal, que são os trabalhadores mais brutalmente explorados. Oferecer às pessoas um pouco de segurança básica fortalece sua capacidade de se organizar e enfrentar práticas empregatícias que lhes negam qualquer forma de respeito, decência e dignidade humana.
Se a Iniciativa pelo PPS vier a fazer uma diferença, ou a nem sair do papel, será decidido, em última instância, pelo compromisso do movimento sindical organizado de lutar por ela. A voz organizada do povo trabalhador sozinha pode não ser suficiente para se atingir PPSs universais, mas sem a luta do movimento sindical eles certamente não se tornarão realidade. Historicamente, a adoção de políticas sociais progressistas quase nunca ocorreu sem a pressão do movimento sindical organizado. A luta pelo PPS é uma chance para o movimento sindical ampliar a sua base, e um movimento sindical forte oferece a melhor chance do PPS se tornar uma realidade para todos. É uma oportunidade em que todos saem ganhando, e que os sindicatos não podem perder.
[1] OIT Genebra 2012. Recomendação Relativa aos Pisos Nacionais de Proteção Social, 2012 (No. 202). (Acessada em 21/11/2012.)
[2] OIT 2012, Artigos 4 e 5. (Acessada em 21/11/2012.)
[3] OIT 2012, Artigo 13 (1) . (Acessada em 21/11/2012.)
[4] http://tinyurl.com/a8u4ok3 (Acessada em 21/11/2012.)
[5] OIT Genebra, 2008. ‘Can low-income countries afford basic social security?’ . (Acessado em 21/11/2012.)
[6] OIT, 2012, Artigo 12. (Acessada em 21/11/2012.)
[7] OIT 2012, Artigo 9 (1). (Acessada em 21/11/2012.)
Baixe este artigo em PDF
Frank Hoffer é pesquisador sênior do Escritório de Atividades para os Trabalhadores da OIT. As opiniões expressas aqui são de cunho pessoal.
As opiniões expressas nesta publicação não necessariamente refletem as da Fundação Friedrich Ebert.