Bernard Thibault |
Esta é uma versão abreviada de uma entrevista publicada pela primeira vez na revista francesa Altermondes.
Em 25 de fevereiro de 2015, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) emergiu de uma crise que a havia impedido de funcionar a contento por três anos. O motivo dessa crise foi o questionamento por parte das organizações dos empregadores do direito de greve. O senhor poderia nos falar mais sobre esse questionamento? Bernard Thibault: A OIT nasceu logo após o final da Primeira Grande Guerra em resposta à simples observação de que as origens da guerra encontram-se na precariedade social e na pobreza. Por isso as nações concordaram em criar um corpo de leis trabalhistas de caráter universal, com a inclusão de textos básicos sobre o direito à liberdade sindical e o direito de greve. Criado pouco mais tarde, o Comitê de Especialistas na Aplicação das Convenções e Recomendações ficou encarregado de examinar como os estados estavam aplicando essas normas e de emitir pareceres. Como resultado, os estados passaram a ser responsabilizados pelos casos de descumprimento das normas. Mas a partir de 2012, as organizações dos empregadores contestaram o fato de que esses especialistas pudessem reconhecer o direito de greve em países onde esse direito não está previsto na constituição.
O que deflagrou a crise em 2012?
B.T: De modo bastante simples, há um elemento das organizações dos empregadores que não quer mais saber de um código laboral de alcance mundial. Entretanto, este tem se tornado cada vez mais necessário à medida que a situação do mundo do trabalho se deteriora. Atualmente, o desemprego afeta 215 milhões de pessoas. Um de cada dois trabalhadores está sem contrato de trabalho; somente um em cada quatro tem uma relação de emprego estável; 21 milhões de pessoas estão submetidas a trabalho forçado; sabe-se que quase 168 milhões de crianças trabalham; e 23 milhões de trabalhadores morrem a cada ano devido a doenças ou acidentes relacionados ao trabalho. Portanto, no momento em que deveríamos ser ainda mais exigentes com relação ao cumprimento das normas, os empregadores lançam uma ofensiva em nome da competitividade econômica em que chegam até a transformar direitos básicos, como a liberdade sindical, em moeda de troca.
O que o senhor quer dizer com “ofensiva dos empregadores”?
B.T: A OIT é uma organização tripartite – a única. Ela opera com base no consenso entre estados, organizações de empregadores e sindicatos de trabalhadores. Embora não haja um mecanismo de sanção, os relatórios, pareceres ou decisões emitidas por um dos órgãos dessa organização têm, do ponto de vista diplomático, enorme efeito como incentivo e/ou fator dissuasivo sobre os estados que infringem essas normas. A partir de 2012, porém, sempre que os casos sendo examinados envolviam a questão do direito de greve – ainda que os fatos fossem indiscutíveis, ainda que se tratasse de um caso encerrado – os empregadores passaram a se recusar a votar o parecer. Com isso, mais nenhum estado passou a receber advertências formais sobre violações à Convenção 87, sobre o direito de greve. E se não há parecer, não há relatório oficial. A violação simplesmente deixa de existir.
Algumas pessoas retrucariam que esse direito não está consagrado na Convenção.
B.T: Esse é um argumento falacioso que, no entanto, está no cerne da polêmica desde 2012. Os advogados dos empregadores desenvolveram o argumento de que a Convenção 87 não afirma explicitamente que o direito de greve faz parte das liberdades sindicais. E isso é fato. Mas esse detalhe menor não se sustenta quando examinado à luz da prática e da história. As greves sempre foram um dos meios à disposição dos sindicatos. Pode-se também argumentar que as greves já existiam antes mesmo de que os sindicatos fossem reconhecidos, o que ainda é o caso em certos países. Em nosso impasse com as organizações dos empregadores, eles chegaram a recuar em certo momento e concordaram em reconhecer o direito de greve, mas apenas naqueles países onde esse direito estivesse previsto na Constituição. Isso não faz sentido. Em uma organização mundial, o objetivo não é tomar nota de direitos que já existem em nível nacional. Pelo contrário, trata-se de estabelecer normas que tenham alcance universal. Após três anos de obstrução, os estados, mesmo aqueles que não possuem legislação sobre o direito de greve, terminaram por emitir uma declaração reconhecendo que as greves são um meio de ação legítimo dos sindicatos. Isso foi um revés para os empregadores.
A questão restringe-se apenas a contestar o direito de greve?
B.T: Essa é uma ofensiva geral. A posição de princípio dos empregadores é que deveria haver menos leis e mais acordos coletivos por empresa – em outras palavras, menos regras aplicáveis a todos e mais menus de direitos preestabelecidos dos quais escolher – quando, na prática, os assalariados estão longe de poder negociar em seu próprio local de trabalho sobre o desenvolvimento de seus direitos. Em âmbito mundial, tudo isso se traduz no argumento de que deveríamos parar de buscar uma uniformidade global em questões sociais e aceitar que estamos em uma economia aberta e desregulamentada.
Os governos têm enorme responsabilidade por esses desdobramentos.
B.T: Não há dúvida. Para dar um exemplo sintomático, já faz algum tempo que o Catar vem sendo alvo de manchetes internacionais por violações de direitos trabalhistas. As condições dos trabalhadores lá – a maioria de imigrantes da Ásia – são deploráveis. Então, quem imaginaria que não conseguiríamos enviar uma comissão de inquérito da OIT para lá? Alguns estados preferiram aceitar sem questionar as declarações do governo catariano de pretender fazer um esforço. Na realidade, muitos deles opuseram-se à missão porque há anos vêm se beneficiando dos obséquios financeiros do Catar. As posições dos países foram ditadas por seus interesses econômicos e políticos. Isso é muito prejudicial para a própria organização. É por isso que digo que a organização está sob ataque direto[1].
Essa situação não revela também uma fraqueza dos sindicatos dos trabalhadores?
B.T: Devemos reconhecer que o movimento sindical está em dificuldade. Não há um único país do mundo onde ele não esteja encolhendo. O movimento sindical está tendo dificuldade em encontrar formas de organizar os assalariados na atual configuração – a saber, de precariedade e mobilidade muito maiores. E em cima disso, há forças políticas que estão negando que a negociação social seja um fator na democracia.
Apenas os estados são responsabilizados perante a OIT. Isso não é um anacronismo?
B.T: Esse é um ponto bastante relevante e que suscita um debate acerca das prerrogativas da OIT. Juntamente com outros, estou pressionando por uma reflexão, no centenário da organização em 2019, sobre novas maneiras de lutar pelo progresso social. As ferramentas de consenso são suficientes para impulsionar o desenvolvimento da legislação social? Seria bom se a OIT, que monitora a atitude dos estados, também pudesse monitorar a atitude das multinacionais, que, por definição, operam em nível internacional. Em 2016, na conferência anual da OIT, planejamos realizar uma discussão sobre a responsabilidade das multinacionais na cadeia de valor.
Para vencer a batalha, as organizações sindicais não deveriam estar construindo alianças mais amplas?
B.T: O primeiro passo é melhorar a organização solidária entre os assalariados de uma mesma cadeia de valor, desde a empresa principal até o empreiteiro menor. Para além do local de trabalho, há associações de consumidores, pessoas em campanhas pela proteção infantil e muito mais. Ser capaz de, com outros, criar movimentos de informação e influência que possam obrigar as multinacionais a mudarem suas formas de organização é uma linha de ação. Historicamente, isso nem sempre foi uma tradição sindical, mas algumas empresas podem mostrar-se mais sensíveis a amplas campanhas populares do que apenas à pressão interna. Portanto, precisamos fazer ambos.
Determinar responsabilidades é uma coisa, fazer com que elas sejam entendidas e aceitas, é outra bem diferente. Não se faz necessário um sistema mais incisivo?
B.T: Não há razão para que o comércio internacional seja a única coisa sobre a qual os estados concordem a respeito de normas e depois as façam ser respeitadas. Precisamos falar em termos de sanções porque regras sem sanções não significam muito. Se você viola o código rodoviário, você é penalizado. Então por que, no campo social, o cumprimento de regras deveria ser voluntário? Em uma economia capitalista, por definição, a lógica empresarial é adicionar valor ao capital, não aos recursos sociais. Se a responsabilidade social fosse tão natural como alguns nos querem fazer crer, não precisaríamos ter inventado o sindicalismo e as lutas sociais. Por certo ainda estamos longe de ter uma maioria de países que queiram trilhar esse caminho. Mas precisamos lançar o debate. Como queremos que a globalização de amanhã seja: selva desorganizada ou progresso social? Não nos esqueçamos de que, para centenas de milhões de trabalhadores em todo o mundo, a OIT é seu único e último escudo contra a lei da selva.
[1] Em seguimento a uma iniciativa do Grupo de Trabalhadores, o Conselho de Administração votou em novembro de 2015 – a despeito de todo o lobby contrário por parte do governo do Catar – favoravelmente por solicitar ‘ao Governo do Catar que aceitasse uma visita tripartite de alto nível, antes da 326ª reunião (março de 2016), que se encarregaria de avaliar todas as medidas adotadas para resolver as questões levantadas na reclamação, inclusive aquelas medidas destinadas a efetivamente aplicar a lei recém-adotada relativa à regulamentação da entrada e saída dos expatriados e de sua residência’.
Bernard Thibault é ex-secretário geral da Confédération Générale du Travail (CGT) e é membro do Grupo dos Trabalhadores do Conselho de Administração da OIT.
As opiniões expressas nesta publicação não necessariamente refletem as da Fundação Friedrich Ebert.
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