Antônio Lisboa |
Em primeiro lugar, a direita nacional, mais uma vez derrotada, pediu a recontagem dos votos. Depois, tentou reprovar as contas da campanha da presidenta reeleita e patrocinou diversas outras manobras até chegar ao impeachment. Durante todo o ano de 2015 até agora, foram sendo criados "escândalos" amplamente divulgados pela mídia, conferindo veracidade a centenas de mentiras. A arquitetura do golpe foi elaborada, portanto, a partir da ação diária do oligopólio da mídia (no Brasil apenas seis famílias detêm 80% da informação - TVs, jornais, revistas, rádios, agências de notícias, sites na internet...) com o apoio financeiro do empresariado dos ramos financeiro, industrial e do agronegócio.
Essa direita que conspirou abertamente contra o mandato da presidenta eleita é resultado do secular passado escravista e reacionário que marca a história nacional, assim como herdeira legitima dos setores sociais e econômicos responsáveis historicamente por esse regime. Ao chegarem ao país, essas elites tomaram de assalto nossas terras e riquezas. Os africanos, capturados em suas terras, eram trazidos à força para a América Portuguesa, e tornaram-se, inicialmente, mão-de-obra fundamental nas plantações de cana-de-açúcar, tabaco e algodão. Mais tarde isso se repetiu nas vilas e cidades, minas e fazendas de gado. A classe socialmente dominante, composta por uma minoria branca, justificava essa condição por ideias pseudo-religiosas e racistas que “legitimavam” sua pretensa superioridade e os seus privilégios.
As diferenças étnicas funcionavam como barreiras sociais. A escravidão no Brasil foi uma experiência de longa duração. Os seres humanos escravizados foram, por mais de três séculos, a principal mão-de-obra da economia nacional – o Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão. Mais que uma atividade econômica na qual o indivíduo é propriedade de outro, a escravidão fixou um conjunto de concepções em relação ao trabalho, às pessoas e às instituições. Constituindo-se, dessa forma, em uma cultura preconceituosa e escravocrata que persiste até os nossos dias. O que definia e caracterizava a elite colonial era aquilo que ela não fazia – o trabalho manual sempre foi visto como atividade menor, coisa dos gentios e dos escravos – desejável era viver de alugueis, benesses públicas e da renda dos grandes latifúndios.
A elite brasileira ainda insiste em um capitalismo selvagem e não aceita que negros, pobres, mulheres, indígenas, homossexuais, moradores de periferias e favelas tenham acesso ao respeito e à dignidade. As raízes da apartação social se manifestam pelo ressentimento vivenciado por grande parte da classe média que se identifica com a parte de cima da pirâmide social e que enxerga seus privilégios como direitos. Esse grupo nutre a segregação e não aceita as mudanças ocorridas nos últimos 12 anos, desde a vitória de Lula nas eleições presidenciais de 2003. Quer manter privilégios, julga e deseja que existam pessoas disponíveis ao subemprego e à exploração, acredita que aeroportos, shopping centers e universidades são espaços sociais exclusivos da elite branca e rica.
O projeto representado pelos governos de Lula e Dilma foi responsável pela ascensão social de mais de 40 milhões de brasileiros, a criação de mais de 20 milhões de empregos formais e pela implementação de um novo modelo de desenvolvimento social e econômico mais justo e que priorizou o fortalecimento do mercado interno, ao mesmo tempo em que intensificava as relações entre os países da América Latina, África e era protagonista na criação dos BRICS.
O golpe, nesse sentido, trata-se, sobretudo, de uma tentativa de interromper esse amplo processo de ascensão social e desenvolvimento nacional soberano. Em detalhe, podemos destacar três objetivos mais específicos dessa tentativa. Em primeiro lugar, impedir que o país aumente seu protagonismo na região e no mundo, seja pela participação no bloco dos BRICS, seja como "player" global, com atuação destacada na ONU e demais organismos internacionais. Freiar o crescimento do país no cenário internacional é a estratégia dos EUA, que obviamente quer continuar a ter a América Latina como seu quintal. O segundo objetivo é obrigar o país a entregar suas extraordinárias riquezas naturais, especialmente suas reservas de água e as enormes reservas petrolíferas da camada do pré-sal, recentemente descobertas. O terceiro objetivo é a retomada, pela direita, do governo nacional por meio do parlamento conservador eleito em 2014, já que pelo voto popular não o consegue.
Para atingir todo esse conjunto de objetivos, o golpe envolveu e articulou uma ampla coalização de atores nacionais e internacionais. No primeiro momento, o golpe foi capitaneado pelo candidato derrotado da oposição de direita, Aécio Neves. No entanto, hoje, as três peças-chaves do golpe parlamentar, jurídico e midiático são: a primeira, Eduardo Cunha, afastado da presidência da Câmara dos Deputados pelo Supremo Tribunal Federal (STF), acusado de corrupção e lavagem de dinheiro, com milhões de dólares em contas na Suíça e réu por corrupção no STF. A segunda, setores do judiciário que através de investigações, vazamentos seletivos e ações espetaculosas e midiáticas contribuíram para uma ruptura da ordem democrática e institucional. E, por último mas não menos importante, o capital nacional e internacional que, através de seus representantes – como confederações e federações patronais, grandes meios de comunicação, partidos políticos conservadores e de direita e apoiados, de maneira entusiasmada, pela parcela mais rica da sociedade brasileira – e alinhados com os interesses geopolíticos dos países ricos, buscam reduzir o custo da mão de obra na economia brasileira e, como já destacamos, entregar nossas riquezas nacionais.
O golpista Michel Temer, como seu primeiro ato de interinidade, extinguiu, dentre outros ministérios, o Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, os Ministérios do Desenvolvimento Agrário – responsável pela agricultura familiar e a reforma agrária – da Cultura – recriado após um amplo movimento da classe artística nacional – Ciência e Tecnologia e o da Controladoria Geral da União – responsável pela transparência e combate à corrupção.
Importante destacar também, que o ministério interino é composto por sete ministros investigados no âmbito da Operação Lava Jato e não possui, pela primeira vez, desde a Ditadura Militar, nenhuma mulher – assim, como nenhum jovem; negro; minorias e também representantes dos movimentos sociais e sindicatos. Até o momento, em apenas um mês, três ministros do governo golpista, foram obrigados a se demitirem por conta de graves e reiterados casos de corrupção. O próprio Michel Temer é acusado por um dos delatores da “Operação Lava Jato” de negociar o recebimento de 1,5 milhões de reais em doação ilegal para um aliado político que concorreu nas eleições municipais de 2012. Temer também é citado em um caso que envolve o recebimento de 5 milhões de reais de outra empreiteira envolvida na “Lava Jato”.
O governo golpista, em questão de poucos dias, anunciou ou sinalizou uma série de retrocessos gravíssimos nas políticas sociais, tais como: a insistência em uma Reforma da Previdência que dificulte ainda mais o acesso dos trabalhadores à aposentadoria e reduza os seus benefícios; reforma trabalhista que torne os direitos garantidos pela CLT em objeto de negociação, prevalecendo o negociado sobre o legislado; redução do tamanho do Sistema Único de Saúde; cobrança de mensalidades em cursos de extensão e de pós-graduação nas universidades públicas; cortes no programa Bolsa Família que poderiam atingir até 30% dos beneficiários; fim de programas habitacionais para a população de baixa renda, geridos em parceria com movimentos sociais; ataques ao direito democrático de manifestação; e política externa submissa aos interesse dos grandes impérios, através de hostilidades com os governos latino-americanos democraticamente eleitos que não reconhecem a legitimidade deste governo golpista.
No mais grave ataque aos direitos sociais desde a promulgação da constituinte de 1988, o governo golpista pretende que os investimentos em saúde e educação sejam corrigidos, por um prazo de dez anos, apenas pela variação da inflação do ano anterior. Caso essa regra estivesse valendo desde 2006, o orçamento federal da saúde seria hoje 30% menor e o da educação sofreria com um corte brutal da ordem de 70% – vale lembrar, que essa regra, proposta pelo governo interino, também iria incidir nos orçamentos dos governos estaduais e prefeituras municipais. Seria a destruição dos nossos sistemas públicos de saúde e educação.
Dessa forma, podemos afirmar que o impeachment da presidenta Dilma Rousseff significou uma tentativa desesperada de implementar um programa mais duro e antipopular do que aquele que foi sistematicamente derrotado nas últimas quatro eleições presidenciais. Os eleitores e, sobretudo, aqueles mais pobres, não contam nos cálculos da junta golpista – apenas um governo fruto de um golpe poderia propor medidas tão desconectadas dos interesses manifestos da imensa maioria da população. O povo brasileiro espera maior investimento nas áreas sociais, especialmente em saúde e educação, e rechaça mudanças na legislação trabalhista e na previdência social que signifiquem retirada de direitos.
A CUT não reconhece o governo Temer e o condena como ilegítimo, por ser resultado de um processo ilegal e golpista de impeachment e por desrespeitar a vontade expressa da maioria dos cidadãos brasileiros que elegeu, em 2014, a Presidenta Dilma – único governo eleito e, portanto, legítimo. Não aceitaremos que a classe trabalhadora e os setores mais pobres da população tenham que sofrer ainda mais sacrifícios. Lutamos até agora contra o golpe e continuaremos lutando, nas ruas e nos locais de trabalho, para reconduzir o país ao Estado de Direito e ao regime democrático, contra a retirada de direitos dos trabalhadores e das trabalhadoras e contra iniciativas que busquem a inserção subordinada do Brasil na economia internacional.
Antonio de Lisboa Amâncio Vale é Secretário de Relações Internacionais da Central Única dos Trabalhadores (CUT Brasil) e Presidente do Instituto de Cooperação da CUT (ICCUT). Em 2014 foi eleito membro representante dos Trabalhadores no Conselho de Administração da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
As opiniões expressas nesta publicação não necessariamente refletem as da Fundação Friedrich Ebert.
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