Karin Astrid Siegmann |
A partir da adoção de medidas preventivas contra a propagação do novo coronavírus, surgiram novos tipos de heróis e heroínas: as trabalhadoras e trabalhadores essenciais. Uma crise global com as características da atual nos conscientiza do essencial dos cuidados e da alimentação para o nosso bemestar. A lógica subjacente é muito simples: as trabalhadoras e os trabalhadores essenciais (re)geram a vida, não geram produtos ou lucros. Assim, eles estão no topo da lista de ocupações essenciais no contexto das respostas à covid-19 anunciadas por muitos governos. Mas, apesar de manterem as engrenagens da sociedade em dia e em movimento, seus salários geralmente continuam baixos e seu trabalho não é valorizado adequadamente.[1]
Heróis e heroínas da crise do coronavírus
Entre os aplausos coletivos para as enfermeiras e enfermeiros e os comunicados de rádio que destacam o papel das trabalhadoras domésticas na contenção do coronavírus, é fácil esquecer que a força de trabalho essencial de hoje tem sido o precariado da normalidade anterior. Em todo o mundo, as pessoas que trabalham no cuidado e alimentação estão nos mais baixos níveis sociais e salariais. Por exemplo, no Paquistão, a enorme força de trabalho informal da agricultura e serviços domésticos pode apenas sonhar em ganhar o salário mínimo. No caso das trabalhadoras, a desigualdade salarial entre gêneros aumenta ainda mais a pobreza por renda. Desde a década de 1990, a principal incidência de «mulheres trabalhadoras da saúde» na melhoria de indicadores de saúde materna e infantil é reconhecida. No entanto, ao longo de muitos anos, ditas profissionais médicas de importância fundamental receberam «bolsas de estudos» equivalentes a metade do salário mínimo e não receberam contratos regulares de emprego, como no caso de outras funcionárias públicas.
Esse padrão não difere muito daquele prevalecente no país rico em que vivo, na Holanda. Nesse caso, a força de trabalho agrícola é predominantemente nativa da Europa Central e Oriental e trabalha com base em contratos de zero hora. Graças ao trabalho árduo que fazem no setor horticola, as receitas das exportações agrícolas do país estão em segundo lugar no mundo. No entanto, seus contratos de trabalho não estipulam garantias de emprego ou renda. Muitas trabalhadoras domésticas que cuidam dos filhos de empregadores holandeses ou cuidam dos idosos são migrantes sem documentos, cuja situação legal precária os impede de reivindicar os poucos direitos de proteção social que lhes correspondem. O status do seu trabalho está na parte inferior da categoria de prestigio ocupacional atual. Somente as trabalhadoras do sexo sofrem um estigma social ainda pior, apesar de seu trabalho satisfazer a «fome de pele» humana que se transformou em uma verdadeira fome no contexto de quarentena para a prevenção de coronavírus.
A crise do coronavírus agrava a precariedade das trabalhadoras e dos trabalhadores essenciais
Enquanto os aplausos simbólicos e literais para a população trabalhadora essencial revelam um certo reconhecimento de sua importância, na realidade, a crise do coronavírus agrava ainda mais a situação precária dessa população.
Como regra geral, a carga de trabalho adicional do pessoal médico ou das trabalhadoras domésticas para fornecer atendimento de emergência de qualidade às pessoas infectadas e seguir as regras de limpeza e higiene necessárias para impedir a propagação da pandemia não é compensada pelo pagamento de horas extra. As mulheres que trabalham na saúde do Paquistão até sofreram cortes de sua escassa compensação. Além disso, muitas trabalhadoras domésticas e sexuais migrantes perderam o emprego, mas o estigma associado ao seu status legal ou ocupação implica que elas não tenham direito a receber pacotes de assistência do governo. As pessoas migrantes que trabalham na esfera da alimentação enfrentam uma encruzilhada cruel, entre o contágio nos locais de trabalho, nos meios de transporte lotados e nas acomodações repletas que tornam impossível o distanciamento social, por um lado, e a perda de seu emprego e sustento, por outro. Leyva del Río e Medappa (2020) estão corretos ao concluir que «as `heroínas´ e os `heróis´ desta crise, as pessoas que sustentam nossas vidas, dificilmente estão em posição de se sustentar».
Enquanto hoje muitos observadores insistem em revalorizar o trabalho essencial no novo «normal» pós-coronavírus[2], os exemplos que acabamos de mencionar demonstram que isso provavelmente não será uma consequência automática do novo reconhecimento simbólico da importância das esferas da alimentação e dos cuidados para o nosso bem-estar. Pelo contrário, eles parecem indicar que a crise em curso aprofundará ainda mais a erosão das atividades que sustentam a vida.
Como pode ser alcançada essa revalorização?
Revalorizar o trabalho essencial a partir da interconectividade das lutas
Historicamente, as melhorias salariais, de proteção social e reconhecimento foram o resultado de lutas operárias coletivas. Hoje, havendo se fraturado o apoio do governo tanto em países ricos quanto em países pobres, as trabalhadoras e os trabalhadores essenciais lutam da mesma forma. Por exemplo, em Bogotá, capital da Colômbia, o sindicato das trabalhadoras e trabalhadores do sexo, Sitrasexco, luta contra a pobreza de seus membros que perderam o emprego devido às medidas de prevenção contra o coronavírus, distribuindo alimentos e bens de necessidade diária. Na Holanda, organizações de trabalhadoras migrantes e trabalhadoras do sexo criaram fundos de emergência e pediram aos clientes que mantivessem seu apoio durante a crise. Eles também exigiram que o governo holandês garantisse a cobertura social dessas trabalhadoras, independentemente do status de imigrante e de sua situação de emprego. Aquelas pessoas que trabalham limpando as ruas de Mumbai recorreram aos tribunais para exigir que as empresas e o governo lhes dessem equipamentos de proteção para o trabalho.
O envolvimento de organizações parceiras pode fortalecer essas redes intersetoriais de trabalhadoras e trabalhadores essenciais. Um exemplo disso são as redes feministas que apoiam as reivindicações de trabalhadoras domésticas e sexuais da mesma forma, porque a falta de reconhecimento dessas ocupações está enraizada nas estruturas de gênero que desvalorizam o trabalho feminizado, bem como nas hierarquias sexuais que estigmatizam certas sexualidades além da esfera privada, não remunerada. Da mesma forma, associações de migrantes, grupos antirracistas e grupos de direitos humanos se posicionaram como aliados naturais da população trabalhadora migrante que, por outro lado, está super-representada em todos os grupos de trabalho essencial, enquanto os preconceitos muito difundidos contra as pessoas que não são cidadãos do país, são de uma raça diferente e têm um estilo de vida não sedentário são aproveitados para justificar seus baixos salários e normas de trabalho. O papel que uma rede de aliadas das pessoas migrantes que trabalham na agricultura na União Europeia desempenhou recentemente pode servir como exemplo. Amplificou as vozes das pessoas que trabalham na agricultura e suas reivindicações aos governos da UE, exigindo «acomodações decentes, acesso à água potável, testes rápidos e fornecimento de equipamentos de proteção para quem trabalha em campos e plantas de processamento europeus», bem como o pagamento de subsídios por doença no contexto de curto prazo da covid-19. Eles também propõem que, a médio prazo, os subsídios agrícolas da UE sejam condicionados ao cumprimento de normas trabalhistas (mais inclusivas), normas sociais e acordos coletivos de trabalho.
Dada a sobreposição entre as preocupações, abordálas em rede pode resultar em que tais lutas tenham um grande potencial para moldar um futuro pós-corona no qual as trabalhadoras e trabalhadores essenciais recebam o reconhecimento que merecem. O chamado para ouvir suas opiniões e integrálas às reformas para aprofundar a justiça trabalhista e avançar em direção a uma sociedade com níveis mais altos de empatia é o ponto de partida que muitas organizações de trabalhadoras e trabalhadores das esferas de alimentos e assistência compartilham. Em geral, eles concordam que as hierarquias cruzadas de gênero, raça, sexualidade e status migratório que condicionam a precariedade de seu trabalho e vida devem ser enfrentadas de frente através de movimentos em direção ao aprofundamento dos direitos e ao seu cumprimento. Por fim, o coro de diversas vozes, embora unido pelos trabalhadores e trabalhadoras essenciais, terá mais possibilidades de ampliar suas demandas por reconhecimento, condições de trabalho decentes e proteção social inclusiva para cada trabalhadora e cada trabalhador ... e obter respostas públicas positivas.
As sugestões que acabamos de fazer não constituem uma utopia alheia ao mundo; refletem práticas encorajadoras já existentes. Alguns anos atrás, perguntei a uma empregada doméstica mexicana do Texas por que ela havia viajado para Ohio para participar de uma manifestação de uma organização que exigia justiça para os trabalhadores e trabalhadoras agrícolas migrantes da Flórida. Sua resposta: «Eles apoiam nossas lutas, nós apoiamos as deles». Eles estavam unidos pela reivindicação de que as pessoas deveriam ser valorizadas acima dos lucros.
Aqui estão alguns pontos de partida sobre como a atual crise do coronavírus pode ensinar à sociedade quem são as pessoas cujo trabalho é mais importante para os seres humanos empáticos. Não vamos perder esta oportunidade.
[2]. É encorajador saber que um grupo diversificado de colegas formula e compartilha ideias semelhantes (por exemplo, Leyva del Río e Medappa (2020), Mezzadri (2020). As ideias apresentadas coincidem com as reivindi- cações, exigindo e especificando visões mais amplas para cenários susten- táveis pós-coronavírus (por exemplo, Burrow (2020), Feminisms e De- growth Alliance (2020), Group of Academics at Dutch Universities (2020).
Karin Astrid Siegmann é professora adjunta de economia do trabalho e gênero no Instituto Internacional de Estudos Sociais (ISS, na sigla em inglês). Ela está interessada em entender como as trabalhadoras e os trabalhadores precários desafiam e alteram as estruturas sociais, econômicas e políticas que marginalizam o trabalho.
Referencias
Burrow, S. (2020) «A New Social Contract can Rebuild our Workplaces and Economies after COVID-19» [«Um novo contrato social pode reconstruir nossos locais de trabalho e nossas economias após a covid-19»]. Medium, 18 de março.
Feminisms and Degrowth Alliance (2020) «Collaborative Feminist Degrowth: Pandemic as an Opening for a Care-Full Radical Transformation» [«Declínio feminista colaborativo: a pandemia como acesso à transformação radical baseada em cuidados»].
Group of Academics at Dutch Universities (2020) «Planning for Post-Corona: A Call for Post-Neoliberal Development» [«Planejar o tempo pós-corona: um apelo ao desenvolvimento pós-neoliberal »].
Leyva del Río y Medappa (2020) «Essential Workers of the World Unite!» [«Trabalhadores do mundo univos!»]. ROAR, 17 de abril.
Mezzadri (2020) «A Crisis Like no Other: Social Reproduction and the Regeneration of Capitalist Life During the COVID-19 Pandemic» [«Uma crise como nunca antes: reprodução social e regeneração da vida capitalista durante a pandemia da covid-19»]. Developing Economics, 20 de abril.
Uma versão resumida desta coluna foi publicada pelo Instituto Internacional de Estudos Sociais da Universidade Erasmus de Roterdã (ISS), como uma contribuição ao seu blog sobre desenvolvimento global e justiça social (blISS).
As opiniões expressas nesta publicação não necessariamente refletem as da Fundação Friedrich Ebert.
Referencias
Burrow, S. (2020) «A New Social Contract can Rebuild our Workplaces and Economies after COVID-19» [«Um novo contrato social pode reconstruir nossos locais de trabalho e nossas economias após a covid-19»]. Medium, 18 de março.
Feminisms and Degrowth Alliance (2020) «Collaborative Feminist Degrowth: Pandemic as an Opening for a Care-Full Radical Transformation» [«Declínio feminista colaborativo: a pandemia como acesso à transformação radical baseada em cuidados»].
Group of Academics at Dutch Universities (2020) «Planning for Post-Corona: A Call for Post-Neoliberal Development» [«Planejar o tempo pós-corona: um apelo ao desenvolvimento pós-neoliberal »].
Leyva del Río y Medappa (2020) «Essential Workers of the World Unite!» [«Trabalhadores do mundo univos!»]. ROAR, 17 de abril.
Mezzadri (2020) «A Crisis Like no Other: Social Reproduction and the Regeneration of Capitalist Life During the COVID-19 Pandemic» [«Uma crise como nunca antes: reprodução social e regeneração da vida capitalista durante a pandemia da covid-19»]. Developing Economics, 20 de abril.
Uma versão resumida desta coluna foi publicada pelo Instituto Internacional de Estudos Sociais da Universidade Erasmus de Roterdã (ISS), como uma contribuição ao seu blog sobre desenvolvimento global e justiça social (blISS).
As opiniões expressas nesta publicação não necessariamente refletem as da Fundação Friedrich Ebert.