Hansjörg Herr |
A pandemia da covid-19 pode levar à recessão mais severa desde a Segunda Guerra Mundial. A «recessão da covid-19» de 2020/2021 será mais profunda que a Grande Recessão de 2009 após a crise financeira de 2007/2008 e pode ser comparada à Grande Depressão da década de 1930.
O perigo das recessões profundas é que seus efeitos prejudiciais, longe de serem limitados a curto prazo, podem desencadear longos períodos de estagnação acompanhados por cres- centes problemas socioeconômicos. O fato de que essas recessões sejam amortecidas ou, inversamente, aprofundadas, e o que acontecerá após a crise aguda, dependerá das políticas aplicadas. A contribuição que apresentamos aqui discutirá os erros que poderiam ser cometidos e as lições a serem aprendidas das severas recessões do passado. Nesta base, são expostas algumas conclusões políticas sobre a «recessão da covid-19».
Três perigos
Os perigos durante e após as recessões severas ocorrem em três áreas: a) salários e deflação mais baixos; b) ausência de prestamistas de última instância e altos níveis de dívidas pendentes que impeçam a recuperação; e c) falta de estímulos.
Salários e deflação mais baixos: em profundas crises, o desemprego cresce rapidamente e o poder de negociação dos sindicatos e dos trabalhadores e trabalhadoras é corroído. Isso pode criar muita pressão no mercado de trabalho e os salários nominais podem diminuir e, juntamente com eles, os custos salariais. Esse risco é aumentado pelo fato de que, na opinião de muitos economistas tradicionais, os cortes salariais são uma solução contra altos níveis de desemprego. E, de acordo com a lógica da microeconomia, os cortes salariais podem ajudar as empresas a sobreviver à crise. No entanto, à medida que o nível dos salários nominais diminui em um país, o nível de preços também diminui e uma evolução deflacionária será desencadeada. A Grande Depressão é um bom exemplo. Em quase todos os países industrializados, a queda nos salários nominais levou a processos de deflação cumulativa. O caso do Japão em meados da década de 1990 é outro exemplo. A redução moderada dos custos salariais levou o Japão a uma estagnação que ainda não foi capaz de superar.
Um estado deflacionário prejudica os investimentos. Qual empresa comprará uma máquina hoje, se espera que no próximo ano um concorrente possa comprar o mesmo modelo a um preço mais baixo? Os cortes salariais não reduzem somente a capacidade das famílias de pagar seus empréstimos hipotecários ou outras dívidas, mas também o consumo. No entanto, o principal impacto resulta do aumento da carga real da dívida decorrente da deflação. Os serviços nominais da dívida não diminuem, diferentemente da renda. Como resultado, os problemas financeiros tornamse gerais, ocorre estagnação e, possivelmente, contração cumulativa da economia.
Falta de liquidez e volume da dívida pendente: Quase automaticamente, as recessões levam a problemas de liquidez para o setor privado. Devido à redução da renda com a queda na demanda de bens e serviços, muitas empresas não conseguem cumprir com o serviço de suas dívidas ou pagar seus fornecedores ou salários. Seguindo a lógica do mercado, as instituições financeiras deixarão de conceder empréstimos a essas entidades, porque não querem malgastar o dinheiro. O medo de que novos empréstimos não sejam reembolsados resulta em rigoroso racionamento do crédito. Nesta situação, o banco central terá que assumir o papel de prestamista de última instância, deverá financiar as necessidades de liquidez das unidades econômicas. Sem a intervenção global dos bancos centrais, a crise financeira de 2007/2008 e a subsequente Grande Recessão teriam levado a um desastre semelhante à Grande Depressão da década de 1930. Hoje, a necessidade de um prestamista de última instância, pelo menos para o sistema financeiro doméstico, é geralmente aceita
Um problema importante com as recessões severas é que elas geram, sem exceção, volumes significativos de dívida pendente que sufocam a recuperação. A dívida pendente e os problemas dos devedores de assumir o serviço de suas dívidas bloqueiam a expansão do crédito e o crescimento do PIB. Nessas condições, as políticas monetárias tradicionais são ineficazes, porque as baixas taxas de refinanciamento dos bancos não estimularão a expansão do crédito. Portanto, nesses contextos, os balanços gerais devem ser saneados, resolvendo o problema dos empréstimos inadimplentes e mediante políticas que reduzam a carga da dívida.
O problema tem uma dimensão nacional e outra, internacional. Acumular um alto nível de dívida interna, geralmente em moeda nacional, pode se tornar um fardo pesado, mas, pelo menos teoricamente, o problema pode ser resolvido por meio de medidas políticas nacionais, por exemplo, a nacionalização de institui- ções financeiras superendividadas, como durante a Grande Recessão. A dívida internacional coloca um problema mais complexo. Quase automaticamente, as recessões internacionais severas desencadeiam processos de fuga de capitais dos países de moedas fracas para os estados capitalistas hegemônicos que emitem as principais moedas do mundo. Os proprietários de grandes e pequenas fortunas no primeiro grupo de países seguem suas estratégias de proteção de ativos e tentam colocar sua riqueza nas moedas internacionais dominantes, atualmente o dólar estadunidense e o euro. Ao mesmo tempo, cessam os fluxos internacionais de capitais para países cujas moedas já estão enfraquecidas. Em constelações dessas características, os países com moedas fracas enfrentam dificuldades extremas – e é até impossível para elas – para pagar o serviço ou reestruturar sua dívida externa, quase sempre denominada em moeda es- trangeira. Para piorar a situação, as taxas de câmbio dos países mencionados colapsam. Dessa maneira, é desencadeado um efeito desastroso sobre a dívida real, porque os atores domésticos nesses países devem enfrentar dificuldades crescentes de cumprir o serviço de sua dívida externa. O efeito sobre a dívida real que se origina no tipo de câmbio atua com mais rapidez e violência do que a deflação, porque as taxas de câmbio se movem mais rápido do que os salários e os preços. A análise da situação atual da economia mundial mostra que a maioria dos países emergentes e em desenvolvimento sofre o impacto dos efeitos mencionados.
Como disse o famoso historiador Charles Kindleberger, a Grande Depressão atingiu suas dimensões somente porque: a) não havia um líder internacional de última instância, e isso significa que nem as instituições nem os mecanismos de cooperação com os países que sofreram problemas externos existiam; b) não houve fluxo anticíclico de capital induzido politicamente de países sem problemas externos para aqueles que enfrentavam problemas externos graves; c) os países sem problemas externos seguiram políticas protecionistas para estimular o emprego e reduzir as importações.
Falta de demanda, necessidade de estímulos: durante as recessões severas, os governos devem fornecer estímulos fiscais e estabilizar a demanda. Numerosos casos mostraram que o recurso à austeridade fiscal não é a solução durante as recessões, desde a austeridade fiscal aplicada pelo Presidente Hoover dos Estados Unidos (1929-1933) e pelo Primeiro Ministro Brüning da Alemanha (1930-1932) às crises na América Latina da década de 1980 e a austeridade aplicada na Grécia após 2010.
No entanto, existem outros problemas mais fundamentais. Independentemente do grande volume da dívida, a combinação de altos níveis de incerteza com expectativas pessimistas pode resultar em estagnações de longo prazo que mantêm os países em um caminho de baixo crescimento e altos níveis de desemprego. Em 1936, John Maynard Keynes estava pensando na Grande Depressão quando argumentou que apenas a socialização dos investimentos, ou seja, um setor público importante com alto volume de investimentos, além de instituições sem fins lucrativos, como cooperativas habitacionais, poderia estabilizar os investimentos em níveis suficientes para evitar fases prolongadas de dinâmica econômica insuficiente. Na maioria dos países, a Grande Depressão só foi superada quando os preparativos para a Segunda Guerra Mundial começaram a ocupar um papel econômico predominante.
Lições para a recessão da covid-19
A recessão da covid-19 tem o potencial de uma recessão global severa, seguida de estagnação prolongada com efeitos socioeconômicos desastrosos e consequências políticas imprevisíveis. Especialmente a escalada e a duração da crise em muitos países emergentes e em desenvolvimento podem criar problemas fundamentais para os países afetados e para a economia internacional como um todo. Para superar esse perigo, é necessária não apenas ajuda de liquidez a curto prazo de um prestamista internacional de última instância, mas também o cancelamento das dívidas externas de países superendividados. Embora, também nos países desenvolvidos, o volume da dívida crescerá de forma explosiva e pode dificultar a recuperação do setor privado. Este problema da dívida também deve ser resolvido para pavimentar o caminho para o desenvolvimento sustentável.
Será necessária uma estabilização da economia forte e de longo prazo. A melhor opção é delineada em um acordo verde (Green Deal) global de longo prazo, com enormes investimentos públicos e privados para resolver a transformação ecológica. Para evitar o abandono da estabilidade dos salários nominais, serão essenciais, por um lado, incrementos salariais consistentes com as tendências de crescimento da produtividade da década passada e, por outro lado, taxas de inflação baixas (por exemplo as taxas de inflação que os bancos centrais definam como metas).
A história mostra até que ponto as políticas boas e ruins afetam a profundidade das recessões e quando elas podem ser superadas. Parece não haver dúvidas quanto às políticas necessárias: defesa da estabilidade dos salários nominais, estabelecimento de prestamistas de última instância nos níveis nacional e internacional, remoção rápida dos empréstimos inadimplentes dos balanços, redução da carga da dívida e implementação de um grande programa de estímulos a longo prazo sob o acordo verde.
No entanto, muitas das medidas políticas positivas terão fortes efeitos distributivos. Por exemplo, se a dívida for cancelada em larga escala, alguém terá que pagar: os contribuintes pelo aumento do imposto sobre o valor agregado ou pela introdução do imposto sobre o patrimônio, todos os poupadores bancários ou apenas os ricos, etc. Para que políticas racionais e necessárias sejam aplicadas, os conflitos distributivos acima mencionados devem ser superados como parte de uma visão para o desenvolvimento da sociedade.
Hansjörg Herr é professor emérito da Escola de Economia e Direito de Berlim. Suas áreas de estudo são macroeconomia, economia do desenvolvimento e integração supranacional. Coopera com a Universidade Global do Trabalho desde a sua criação.
Leitura complementar
Nina Dodik y Hansjörg Herr (2014), ‘Previous financial crises leading to stagnation – selected case studies’ [`Crises financeiras passadas com estagnação: estudos de caso selecionados´], IPE (Institute for International Political Economy Berlin), Documento de trabalho 33.
As opiniões expressas nesta publicação não necessariamente refletem as da Fundação Friedrich Ebert.
Leitura complementar
Nina Dodik y Hansjörg Herr (2014), ‘Previous financial crises leading to stagnation – selected case studies’ [`Crises financeiras passadas com estagnação: estudos de caso selecionados´], IPE (Institute for International Political Economy Berlin), Documento de trabalho 33.
As opiniões expressas nesta publicação não necessariamente refletem as da Fundação Friedrich Ebert.