Introdução
No começo de junho, alguns governos municipais e estaduais brasileiros decidiram reajustar as tarifas do transporte público, com aumentos na faixa de 5% a 10%, dependendo do município ou estado. Esperava-se um mínimo de contestação, já que na média a taxa de inflação estava em cerca de 6% e pelo menos dois anos haviam se passado desde o último reajuste. Porém, os aumentos detonaram manifestações em muitas cidades, com um movimento da juventude reiterando a reivindicação de transporte público gratuito.
Os brasileiros vivem novas formas de participação política
As manifestações iniciais eram compostas por pequenos grupos oportunistas, que chegaram a quebrar janelas e vidraças em entradas de estações de metrô, provocando duras reações por parte da polícia estadual. E o que é pior: em São Paulo, alguns manifestantes cercaram e agrediram um policial. Dois dias depois, uma nova passeata foi organizada, com cerca de dois mil participantes. Alega-se que a polícia foi para a rua para vingar seu colega agredido e teria reagido com extrema violência. Infelizmente, este confronto veio a afetar também pessoas que não estavam ativamente envolvidas no protesto. Houve incidentes extremos, como o da jornalista atingida no olho por uma bala de borracha e o das pessoas retiradas de um bar, que teriam sido espancadas com cassetetes.
A repressão foi o estopim da participação de mais de um milhão de pessoas na próxima passeata. Os manifestantes se solidarizaram com os feridos e também introduziram novas motivações aos protestos, reivindicando melhorias em outros serviços públicos, como saúde e educação. Os novos manifestantes tinham diversos perfis, que iam da esquerda à direita. Isto levou ao surgimento de pautas em número ainda maior, como a oposição à corrupção e a um projeto de lei que reduziria o poder de investigação do ministério público. Muito médicos também foram às ruas protestar contra a possibilidade de profissionais estrangeiros terem permissão para trabalhar no Brasil. Vários sindicatos e alguns partidos políticos integrantes da atual coalizão de governo também se juntaram às manifestações.
Outra questão que apareceu com força dizia respeito aos enormes gastos governamentais voltados à organização da Copa do Mundo de 2014 e, em contrapartida, os parcos recursos destinados a melhorar os serviços públicos. Inicialmente, os meios de comunicação criticaram os distúrbios, mas, quando perceberam o potencial que encerravam em termos de criar constrangimentos para o governo federal, passaram a dar cobertura mais favorável aos manifestantes. Após um dia de protestos maciços em mais de 300 cidades, prefeitos e governadores revogaram os aumentos nas tarifas do transporte público sob sua responsabilidade. A presidenta Dilma Roussef assumiu posição positiva com respeito às exposições, propondo uma agenda de reformas a ser discutida e, mais tarde, aprovada por meio de um plebiscito. Entretanto, as forças conservadoras que dominam o Congresso e os meios de comunicação logo implodiram a idéia de qualquer tipo de consulta pública.
Já conhecida, mas não levada a sério, esta reação conservadora mostrou que se quisermos fazer avançar a agenda política progressista no Brasil, o movimento social precisa pressionar fortemente o governo. Até o momento, os lobbies dos empresários, dos proprietários de terra e de setores afins têm sido os mais influentes nas discussões governamentais e os meios de comunicação cada vez mais clamam por medidas de austeridade. Portanto, os sindicatos organizados em seis centrais sindicais nacionais, particularmente a Central Única dos Trabalhadores (CUT), decidiram apresentar suas demandas por meio de um dia nacional de ação, convocado para 11 de julho, valendo-se de greves, manifestações e outros meios. A agenda sindical continha a redução da jornada semanal de trabalho para 40 horas, oposição a um projeto de lei que visava ampliar a terceirização, melhorias ao sistema previdenciário, destinação de 10% do PIB para a educação pública e a mesma quantia para o sistema público de saúde, transporte público de qualidade e reforma agrária. A participação dos trabalhadores foi expressiva e houve uma primeira reunião com o governo, voltada para a agenda sindical, ainda que outro dia de manifestações já estivesse marcado para o final de agosto. Este outro foi menos maciço, mas um resultado importante foi trazer mais parlamentares para o lado dos sindicatos com respeito ao projeto de lei sobre a terceirização, embora esta questão ainda não esteja resolvida.
A dispersão das reivindicações
A retirada dos aumentos das tarifas do transporte público pelos governos locais foi uma vitória do povo, mas manifestações menores continuam a acontecer no Brasil, embora restritas às cidades maiores como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. As reivindicações também variam de acordo com o lugar. No Rio de Janeiro, por exemplo, o alvo dos manifestantes é o governador do estado, especialmente após a descoberta de que ele teria usado o helicóptero oficial para transportar familiares e animais de estimação até sua casa de praia nos fins de semana. Outra questão na cidade diz respeito à solidariedade para com os parentes de um pedreiro que desapareceu após ser detido pela polícia.
Assim, o processo ainda não está concluído e é provável que leve algum tempo até que tenhamos uma análise profunda e completa sobre as razões que provocaram os protestos, apesar da melhora da situação sócio-econômica do Brasil nos últimos anos. Apenas para ilustrar este aspecto, a taxa de desemprego está em seu nível mais baixo (5%) desde que começou a ser medida, na década de 1990, e o Brasil é o único país dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) onde o coeficiente de Gini melhorou na última década.
No entanto, existe ainda um “mal estar” generalizado. Os serviços públicos não são satisfatórios, e com um número expressivo de brasileiros sendo retirados da pobreza extrema e a ascensão de outros grupos sociais, a tendência do povo é fortalecer suas demandas por mais assistência. A crítica feita ao governo pelos meios de comunicação conservadores também contribui com a disseminação do pessimismo, ainda que sem razões reais. As manifestações também expuseram algumas das consequências da transição política negociada, de ditadura para democracia, na década de 1980, particularmente a manutenção da polícia militar, que funciona com quase total impunidade e sem controle democrático, bem como o sistema eleitoral desequilibrado, que preserva os interesses do grande empresariado (além dos setores sociais mais reacionários, como os latifundiários e as igrejas pentecostais).
Conclusão
A boa lição que se aprendeu com os protestos é que é possível se organizar, manifestar e vencer. Os brasileiros se tornaram mais tolerantes com relação a manifestações, a despeito das situações caóticas criadas pelas passeatas nas grandes cidades nos horários de pico de trânsito. Portanto, é também mais comum que grupos menores se lancem às ruas com suas reivindicações, sejam elas justas ou não, como os médicos que se opõem ao Programa Mais Médicos, do governo federal. Este programa é resultado da falta de profissionais de saúde, especialmente na zona rural e nas regiões mais pobres do Brasil. Para enfrentar a carência, o governo decidiu contratar médicos de outros países, particularmente de Cuba, para suprir a falta de profissionais brasileiros. A razão por trás da oposição a este Programa é a preservação do monopólio local sobre serviços básicos. O aparecimento, pela primeira vez, do Black Bloc também foi pedagógico, porque sua crítica ao capitalismo e em particular ao sistema financeiro, uma das instituições mais medonhas do Brasil, foi informativa, mesmo sendo condenáveis suas táticas violentas. Até grupos de extrema direita fascista mostraram sua cara odiosa, protestando contra um recente encontro de partidos de esquerda latino-americanos em São Paulo de uma maneira muito agressiva e não-democrática, como sempre.
A questão agora é como os sindicatos e seus aliados avançam politicamente, não enfocando meramente o governo que, apesar de alguns erros, pode ser um aliado. Não obstante, não faz sentido que um governo que tende à esquerda adote partes da agenda conservadora derrotada na última eleição presidencial. Os movimentos sociais precisam pressionar o Estado para que priorize interesses e necessidades da maioria da população e varra a sujeira deixada pelo passado autoritário.
Baixe este artigo em PDF
Kjeld Jakobsen foi integrante da Direção Executiva Nacional
da CUT durante 12 anos, dos quais nove como
Secretário de Relações Internacionais. Ele é mestre em
Ciência Política, trabalha como consultor em questões de
cooperação internacional e leciona estratégias sindicais
no curso da GLU no Brasil.
No começo de junho, alguns governos municipais e estaduais brasileiros decidiram reajustar as tarifas do transporte público, com aumentos na faixa de 5% a 10%, dependendo do município ou estado. Esperava-se um mínimo de contestação, já que na média a taxa de inflação estava em cerca de 6% e pelo menos dois anos haviam se passado desde o último reajuste. Porém, os aumentos detonaram manifestações em muitas cidades, com um movimento da juventude reiterando a reivindicação de transporte público gratuito.
Os brasileiros vivem novas formas de participação política
As manifestações iniciais eram compostas por pequenos grupos oportunistas, que chegaram a quebrar janelas e vidraças em entradas de estações de metrô, provocando duras reações por parte da polícia estadual. E o que é pior: em São Paulo, alguns manifestantes cercaram e agrediram um policial. Dois dias depois, uma nova passeata foi organizada, com cerca de dois mil participantes. Alega-se que a polícia foi para a rua para vingar seu colega agredido e teria reagido com extrema violência. Infelizmente, este confronto veio a afetar também pessoas que não estavam ativamente envolvidas no protesto. Houve incidentes extremos, como o da jornalista atingida no olho por uma bala de borracha e o das pessoas retiradas de um bar, que teriam sido espancadas com cassetetes.
A repressão foi o estopim da participação de mais de um milhão de pessoas na próxima passeata. Os manifestantes se solidarizaram com os feridos e também introduziram novas motivações aos protestos, reivindicando melhorias em outros serviços públicos, como saúde e educação. Os novos manifestantes tinham diversos perfis, que iam da esquerda à direita. Isto levou ao surgimento de pautas em número ainda maior, como a oposição à corrupção e a um projeto de lei que reduziria o poder de investigação do ministério público. Muito médicos também foram às ruas protestar contra a possibilidade de profissionais estrangeiros terem permissão para trabalhar no Brasil. Vários sindicatos e alguns partidos políticos integrantes da atual coalizão de governo também se juntaram às manifestações.
Outra questão que apareceu com força dizia respeito aos enormes gastos governamentais voltados à organização da Copa do Mundo de 2014 e, em contrapartida, os parcos recursos destinados a melhorar os serviços públicos. Inicialmente, os meios de comunicação criticaram os distúrbios, mas, quando perceberam o potencial que encerravam em termos de criar constrangimentos para o governo federal, passaram a dar cobertura mais favorável aos manifestantes. Após um dia de protestos maciços em mais de 300 cidades, prefeitos e governadores revogaram os aumentos nas tarifas do transporte público sob sua responsabilidade. A presidenta Dilma Roussef assumiu posição positiva com respeito às exposições, propondo uma agenda de reformas a ser discutida e, mais tarde, aprovada por meio de um plebiscito. Entretanto, as forças conservadoras que dominam o Congresso e os meios de comunicação logo implodiram a idéia de qualquer tipo de consulta pública.
Já conhecida, mas não levada a sério, esta reação conservadora mostrou que se quisermos fazer avançar a agenda política progressista no Brasil, o movimento social precisa pressionar fortemente o governo. Até o momento, os lobbies dos empresários, dos proprietários de terra e de setores afins têm sido os mais influentes nas discussões governamentais e os meios de comunicação cada vez mais clamam por medidas de austeridade. Portanto, os sindicatos organizados em seis centrais sindicais nacionais, particularmente a Central Única dos Trabalhadores (CUT), decidiram apresentar suas demandas por meio de um dia nacional de ação, convocado para 11 de julho, valendo-se de greves, manifestações e outros meios. A agenda sindical continha a redução da jornada semanal de trabalho para 40 horas, oposição a um projeto de lei que visava ampliar a terceirização, melhorias ao sistema previdenciário, destinação de 10% do PIB para a educação pública e a mesma quantia para o sistema público de saúde, transporte público de qualidade e reforma agrária. A participação dos trabalhadores foi expressiva e houve uma primeira reunião com o governo, voltada para a agenda sindical, ainda que outro dia de manifestações já estivesse marcado para o final de agosto. Este outro foi menos maciço, mas um resultado importante foi trazer mais parlamentares para o lado dos sindicatos com respeito ao projeto de lei sobre a terceirização, embora esta questão ainda não esteja resolvida.
A dispersão das reivindicações
A retirada dos aumentos das tarifas do transporte público pelos governos locais foi uma vitória do povo, mas manifestações menores continuam a acontecer no Brasil, embora restritas às cidades maiores como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. As reivindicações também variam de acordo com o lugar. No Rio de Janeiro, por exemplo, o alvo dos manifestantes é o governador do estado, especialmente após a descoberta de que ele teria usado o helicóptero oficial para transportar familiares e animais de estimação até sua casa de praia nos fins de semana. Outra questão na cidade diz respeito à solidariedade para com os parentes de um pedreiro que desapareceu após ser detido pela polícia.
Assim, o processo ainda não está concluído e é provável que leve algum tempo até que tenhamos uma análise profunda e completa sobre as razões que provocaram os protestos, apesar da melhora da situação sócio-econômica do Brasil nos últimos anos. Apenas para ilustrar este aspecto, a taxa de desemprego está em seu nível mais baixo (5%) desde que começou a ser medida, na década de 1990, e o Brasil é o único país dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) onde o coeficiente de Gini melhorou na última década.
No entanto, existe ainda um “mal estar” generalizado. Os serviços públicos não são satisfatórios, e com um número expressivo de brasileiros sendo retirados da pobreza extrema e a ascensão de outros grupos sociais, a tendência do povo é fortalecer suas demandas por mais assistência. A crítica feita ao governo pelos meios de comunicação conservadores também contribui com a disseminação do pessimismo, ainda que sem razões reais. As manifestações também expuseram algumas das consequências da transição política negociada, de ditadura para democracia, na década de 1980, particularmente a manutenção da polícia militar, que funciona com quase total impunidade e sem controle democrático, bem como o sistema eleitoral desequilibrado, que preserva os interesses do grande empresariado (além dos setores sociais mais reacionários, como os latifundiários e as igrejas pentecostais).
Conclusão
A boa lição que se aprendeu com os protestos é que é possível se organizar, manifestar e vencer. Os brasileiros se tornaram mais tolerantes com relação a manifestações, a despeito das situações caóticas criadas pelas passeatas nas grandes cidades nos horários de pico de trânsito. Portanto, é também mais comum que grupos menores se lancem às ruas com suas reivindicações, sejam elas justas ou não, como os médicos que se opõem ao Programa Mais Médicos, do governo federal. Este programa é resultado da falta de profissionais de saúde, especialmente na zona rural e nas regiões mais pobres do Brasil. Para enfrentar a carência, o governo decidiu contratar médicos de outros países, particularmente de Cuba, para suprir a falta de profissionais brasileiros. A razão por trás da oposição a este Programa é a preservação do monopólio local sobre serviços básicos. O aparecimento, pela primeira vez, do Black Bloc também foi pedagógico, porque sua crítica ao capitalismo e em particular ao sistema financeiro, uma das instituições mais medonhas do Brasil, foi informativa, mesmo sendo condenáveis suas táticas violentas. Até grupos de extrema direita fascista mostraram sua cara odiosa, protestando contra um recente encontro de partidos de esquerda latino-americanos em São Paulo de uma maneira muito agressiva e não-democrática, como sempre.
A questão agora é como os sindicatos e seus aliados avançam politicamente, não enfocando meramente o governo que, apesar de alguns erros, pode ser um aliado. Não obstante, não faz sentido que um governo que tende à esquerda adote partes da agenda conservadora derrotada na última eleição presidencial. Os movimentos sociais precisam pressionar o Estado para que priorize interesses e necessidades da maioria da população e varra a sujeira deixada pelo passado autoritário.
Baixe este artigo em PDF
As opiniões expressas nesta publicação não necessariamente refletem as da Fundação Friedrich Ebert.